10 setembro 2013

Ontem

Extratos do Diário de Viagem ao Brasil.
Como se fosse ontem.

"Recife,
31 de Julho de 2013
a meio da tarde

Por momentos perdi-me de mim. Por momentos saí, esbaforida, tonta, tentando encontrar um apoio, um vício, algo que me anestesiasse. Não sei porque estou aqui. Não sei porque é que de repente voltou a ter tanta importância para mim. Não, não quero. "Estou lúcido como se estivesse para morrer". Por vezes duvido de mim e não quero. Quero estar segura e certa. Firme e confiante como fui até aqui. Até hoje. Esta confiança é tirada a ferros, é forjada, é falsa. Eu não sou o que sou nem creio no que sou. Eu que sou o que não sou. Viver como? Para quem? Para mim. É o que quero aprender a ser e a fazer. 
Agora, hoje, aqui em Recife, à frente deste rio com esta brisa morna nos cabelos o que me dói é o passado. O passado inútil como um trapo. O passado amarrotado e atirado no caixote do lixo a troco de nada. Nestes últimos tempos, tenho-me confiado à vida, tenho aceitado o que a vida me dá e me tira porque até aqui tudo tem feito sentido e tudo se tem conjugado da melhor forma. Penso que hoje vi o que deveria ter visto, li o que deveria ter lido para poder cortar as pontas e dar o nó necessário. Tenho que aprender a dar nós e a afogar solidões. Tenho que viver para mim. Ainda me estou a descobrir, ainda estou a tentar ver quem eu sou e para onde vou... Achei que estava no caminho certo. Perdoar?
Aqui tudo é mais forte. Aqui tudo é poesia. Aqui todos trazem poesia dentro de si. Fico até domingo. Depois preciso libertar-me. Quero voar sozinha. Preciso de estar sozinha. Ontem, a vaguear pelo velho Recife senti que pertencia aqui. Muitas vezes no Brasil tenho sentido que pertenço aqui. Para o ano venho para cá. Preciso de sair daquela Europa cinzenta e aniquilante. Quero ver e viver a Bolívia e o Chile. Mais do que de lá, eu sou de cá. Uma vez mais escrevendo sobre isto sinto que há pontas que se atam, pontas soltas, perdidas que se encontram. É como se tudo fizesse sentido e eu tivesse achado um lugar para ficar. Não posso continuar a tentar encontrar pontos de abrigo nos outros. Eu sou o meu ponto de abrigo. Eu sou o meu mar morto e o meu mar alto. Eu.
Continuo grata à vida por estar aqui. Continuo a sentir-me abençoada. Preciso apenas de estar sozinha, nada mais. Estar apenas comigo. "Só me encontro quando de mim fujo". É nesta fuga constante, diária talvez, que me tento encontrar, que me tento sentir. Sentir-me. Como a mulher que beijava os seus lábios encontrando em si mesma lugar/prazer infinito"

"Olinda, 3 de Agosto de 2013
10h30

Dor de cabeça. Se me dói é porque está aqui, não é? E porque é que eu a sinto tão longe? Habita em mim uma angústia estranha, bizarra, como se por dentro, neste momento, toda eu fosse migalhas de um pão seco, bolorento deixado a um canto. Subitamente silêncio, durante alguns segundos um silêncio profundo e apenas o som do vento nas árvores. Há um espanta-espíritos que toca em si uma linda melodia chinesa, na chaise longue um gato que dorme majestoso como se fosse o dono do mundo, num canto um incenso que liberta cheiros milenares. Do lado de fora um barulho estridente de pássaro, o gato que acorda e a melodia chinesa que pára. Queria levar tudo isto comigo. Queria poder reproduzir tudo isto e poder viver isto comigo e para mim. Preciso de uma casa, de um lar, de um poiso. Até quando este nomadismo e errância sem fim? Até quando o desprendimento às coisas e aos seres? De noite os mosquitos comem-nos vivos e ainda por aqui andamos. Não sei como."

"Viagem de João Pessoa para Natal,
8 de Agosto
A hora do Trem Passar - Raúl Seixas 

Às vezes a alegria é tanta que acho que o peito não vai aguentar... Compreendo tantas coisas agora: a viagem, o desapego, a descoberta, a estrada... tudo é perfeito e se conjuga e completa entre si! 
"Jogar meu corpo no mundo"
"esse meu coração que é tão vagabundo"


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