11 janeiro 2013

Na mesa do café

A velhinha francesa, da profundeza dos seus olhos verdes, possuía uma calma inabalável, uma altivez e confiança no olhar, como se já tivesse vivido tudo o que havia para ser vivido e agora apenas contemplasse. Tinha um porte magnífico e simples, cabeça erguida e um olhar presente, confiante como quem ainda vive, disfruta, não teme e observa. Sim, penso que ela observava tudo o que se passava naquele velho, charmoso e degradado café ao estilo dos anos 50. Pleno de gente, maioritariamente homens, era a única senhora da sua idade que ali estava. E no entanto, isso não a perturbava... estava ali como se aquele fosse o único sítio onde ela quereria estar naquele domingo de manhã. Estava sentada e observava tudo e todos como se o tempo e aquela mesa de café lhe pertencessem.
Perdida na contemplação e análise dos outros lembrou-se do amor que perdeu. De todos os amores que perdeu à força de pouco os amar; lembrou-se que do alto da sua nobreza, superioridade e quase desprezo pelos outros nunca deixou que de facto alguém se aproximasse dela e que quando ela deu um passo em frente e abriu os braços, já todos os outros os tinham fechado e recuado. Aquela rapariga louca, apaixonadamente louca, decidiu um dia ser séria, viver a vida que todos os outros queriam que ela vivesse e casou-se e teve filhos e divorciou-se. Tudo pela ordem certa e socialmente aceite. Contudo, não amou. Nem os filhos. Teve-os ali ao lado, suportou-os como quem suporta um animal doméstico moribundo. Agora não sabia onde estavam. Tinha-se esquecido do seu cheiro, do seu olhar e tentou lembrar-se desse momento apoteótico da maternidade, mas não conseguiu.
O pior de tudo, ou o melhor de tudo, conforme o ponto de vista, é que não se arrependia e naquela manhã de domingo tudo fazia sentido como sempre fez, e não se colocava questões, nem refletia. Olhava e contemplava todos os outros à sua volta, como fizera até aí e sentia-se plena e segura de si. Tentou lembrar-se do que tinha acontecido consigo e com a sua vida nesses anos em que se limitou a viver pelos outros. Rostos, gritos, vidros, papeis, vieram-lhe à cabeça como um estilhaço. Apercebeu-se que a um determinado momento da sua vida escolheu deliberadamente a solidão para calar os gritos e não mais ver os rostos, rasgar os papeis e partir os vidros.

Tentaria agora chegar a uma conclusão. Tentaria perceber o segredo de tudo isto e ousaria colocar a si mesma a grande questão. Quando o fez, nesse mesmo instante, naquela mesa de café, levantou-se como se tivesse medo de após ter descoberto a verdade a pudesse perder. Saiu o mais rápido que pôde no seu dificil andar de 80 anos. Chegou a casa e os cheiros acalmaram-na. Acendeu vagarosamente as velas que dispunha na escravaninha onde escrevinhava. Colocou a sua ária favorita, aquela onde Dido chora o amante perdido. Sentou-se no sofá, de frente para a janela com o sol a bater-lhe na cara e bebeu preguiçosamente do copo que tinha ao seu lado, como se quisesse adiar e prolongar ao máximo aquele instante.
Alguns minutos depois o telefone toca, ela ainda o ouve lá ao fundo mas já não se consegue levantar, esvaem-se-lhe as forças e o paladar azeda-se. 
Ao telefone, um dos filhos cumpria o aborrecido dever de lhe ligar, esperando que ela não atendesse. 

E assim foi. 

Xuanita

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